Vivemos em uma sociedade altamente barulhenta. Trata-se de um tipo de poluição que não apenas agride os ouvidos, mas também deteriora a qualidade da vida interior. Em meio a tanto ruído, que sentido ainda pode ter o silêncio?
Na sociedade do capital, o barulho tornou-se sinônimo de produtividade. O mundo industrializado gera mais ruído a cada dia, como se o som constante das máquinas, das notificações digitais e da publicidade ininterrupta fosse a prova de que a vida está em movimento. Quanto mais barulho, mais se acredita que se está produzindo, criando, vivendo. Mas será mesmo?
O silêncio se dissolve em meio a esse arsenal ruidoso. Perdemos a capacidade de escutar o canto dos pássaros, o correr das águas cristalinas dos córregos, o bater do próprio coração, os sinais vitais que silenciosamente sustentam a vida. Mesmo quando estamos sozinhos, o silêncio parece nos incomodar. O desconforto frente ao silêncio revela o quanto nos tornamos insensíveis à sua necessidade. Vivemos, como diria Adorno, sob a lógica da indústria cultural, que coloniza até mesmo nossos momentos de pausa, transformando o ócio em mercadoria e esvaziando o silêncio de sua potência reflexiva.
Certo pensador disse que “o silêncio é a mãe da palavra”. O que significa dizer que o silêncio fala. Ele antecede e fundamenta toda fala significativa. Walter Benjamin, ao refletir sobre a narração e a escuta, nos ajuda a compreender que há uma experiência da linguagem que não se reduz à comunicação direta. O silêncio, nesse sentido, pode ser pensado como um espaço de escuta da memória, do ado e da experiência vivida que resiste à velocidade e à superficialidade da informação.
Tomemos, então, o silêncio como uma ação comunicativa simbólica — algo que, sem dizer palavra alguma, transmite uma mensagem profundamente significativa. Carl Gustav Jung diria que o silêncio é o espaço onde os arquétipos podem emergir: ele abre a escuta ao inconsciente coletivo, às imagens primordiais da alma humana. No silêncio, símbolos emergem e tocam dimensões da existência que a razão discursiva não alcança. A linguagem simbólica do silêncio permite que as sombras e luzes da psique se manifestem.
O silêncio evoca e convoca o humano a sentir a si mesmo no mundo com os outros. Ele nos captura e nos lança para dentro de nós mesmos. Como lembra Heidegger, a escuta autêntica nasce do silêncio que permite o “ouvir do Ser”. O silêncio é, então, abertura ontológica: é espaço de presença, de atenção, de morada. Não se trata da ausência de som, mas da escuta plena, da suspensão da fala superficial para acolher o que é essencial.
Esse silêncio não é vazio, mas repleto de sentido. Trata-se de uma escuta sensível da vida em sua totalidade. Quando se está em silêncio, é possível perceber os sons mais singelos, os movimentos mais discretos, os gestos mais profundos. Em contraponto, o barulho opera como força que fragmenta, distrai, desconecta como uma antítese da escuta verdadeira.
No silêncio, a vida revela suas sombras e suas luzes. Ele não é apenas ausência de som, mas presença de mundo. É nele que as palavras ganham densidade e que os encontros humanos se tornam mais verdadeiros. O silêncio pode ser acolhimento, resistência, contemplação. E mais: pode ser oração, cuidado e escuta ética. Uma comunicação simbólica que vai além da utilidade e da função, pois se enraíza no mistério da existência. Assim, o silêncio se manifesta como algo capaz de nos transformar e de transformar o mundo. Pelo silêncio, o ser humano escapa as armadilhas da cultura do ruído, do esgotamento e da interioridade. No silêncio como comunicação profunda o ser humano preenche o vazio aberto pela sociedade capitalista.
Em tempos de tanto ruído, resgatar o silêncio é um ato revolucionário e terapêutico. É abrir espaço para o humano em sua inteireza e permitir que a vida, enfim, fale.
JAIRO BARBOSA MOREIRA
É filósofo e doutor em Educação pela Universidade Federal de Goiás. Atua como padre na paróquia São Pedro – Novo Planalto, da diocese de Cristalândia.